CPI da Pandemia
A leitura e a votação do relatório da CPI da Pandemia, previstas para a próxima semana, marcam o fim de seis meses de intensa disputa política em que prevaleceu o clichê “sabe-se como uma CPI começa, mas não se tem ideia de como termina”. Quando pediu a instalação da Comissão, no início do ano legislativo, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) pretendia expor o que considerava má condução das ações de enfrentamento da Covid-19 por parte do governo federal. No máximo, ficaria mais evidente a insistência do governo federal em prescrever remédios ineficazes no combate ao vírus.
Tudo corria como previsto, uma disputa de versões entre governo e oposição, até que, no final de junho, o deputado Luís Miranda (DEM-DF) e seu irmão Luis Ricardo Miranda, servidor concursado do Ministério da Saúde, levantaram a suspeita de interesses escusos na demora do governo federal em comprar as vacinas. Procurado pelos grandes laboratórios do mundo, o governo teria preferido negociar com supostos intermediários que jamais comprovaram ter qualquer contrato de fornecimento com esses laboratórios. O governo foi a nocaute. Pesquisa Datafolha realizada entre os dias 7 e 8 de julho mostrou que a avaliação do governo (ruim/péssimo) superou os 50%.
O kit Covid voltou a chamar a atenção em setembro, quando na reta final dos depoimentos, a operadora de planos de saúde Prevent Senior foi acusada de prescrever o chamado kit Covid para evitar internações ou reduzir o tempo de permanência dos pacientes nos hospitais da rede. Em depoimento que chocou o Brasil, a advogada Bruna Morato, que representava doze médicos que trabalharam para empresa, disse aos senadores que a Prevent Senior orientava os profissionais a reduzir o nível de oxigenação dos pacientes internados há muitos dias, o que pode ter levado muitos a morte. A empresa sempre negou a orientação.
No início dos trabalhos, os governistas chegaram a calcular que o fim da CPI coincidiria com o avanço da vacinação e, portanto, com a queda das mortes e do número de casos. Esse cenário levaria a um natural desinteresse pelo trabalho dos senadores. Acertaram em parte. Não contavam com os irmãos Miranda e a advogada Bruna Murato. Não previram também que enquanto a CPI trabalhava o Brasil quebraria marcas simbólicas de número de mortos. Quando a CPI foi instalada, dia 27 de abril, o País contava 395,3 mil óbitos. Ao final dos trabalhos serão pouco mais de 600 mil.
A CPI instalada por determinação do Supremo Tribunal Federal – diante da recusa inicial do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), de fazê-lo – permitiu ao Brasil ver seus erros. O relatório a ser lido na semana que vem deve apontar responsáveis por potencializar a tragédia. O procurador-geral da República, Augusto Aras, terá 30 dias depois de receber o relatório para arquivar ou abrir investigação contra os indicados pela CPI. Depois de contar os mortos chegou pode estar próxima a hora de julgar os culpados.
Avanço da vacinação
De positivo, os avanços da vacinação. No final de abril, quando a CPI foi instalada, apenas 6,1% dos brasileiros tinham recebido as duas doses da vacina. Agora, superamos os 100 milhões de imunizados, quase 50% da população. Mais de 150 milhões de brasileiros tomaram pelo menos a primeira dose.
A média móvel de morte e a taxa de transmissão da Covid são as menores em quase um ano. Em algumas cidades já se discute, o fim do uso de máscaras. As aulas das redes pública e privada aos poucos retornam ao modelo presencial. Mas a pandemia não acabou e é preciso manter os cuidados.
Perdas e ganhos
Do ponto de vista pessoal, todos perdemos muito com a pandemia: vidas de pessoas queridas, trabalho, autonomia, segurança. A CPI nos mostrou o tamanho dessa derrota ao longo dos últimos seis meses. Mas do ponto de vista político, ainda que não tenha sido a intenção inicial, houve quem tenha ganho com a exposição proporcionada por horas e horas de noticiário sobre os trabalhos da Comissão a um ano das eleições gerais.
Entre os que ganharam estão o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), autor do requerimento de instalação e vice-presidente da CPI. Atirou no que viu, o negacionismo e a insistência em tratamentos ineficazes, e acertou num suposto esquema de compra superfaturada de imunizantes.
O senador Renan Calheiros (MDB-AL) resistiu a todas as tentativas do governo de lhe tirar do cargo de relator da CPI, acionando inclusive o STF e tentando ressuscitar denúncias contra si. Com a experiência de quem presidiu o Senado quatro vezes, Renan foi duro com os depoentes e colegas governistas que tentaram tumultuar os trabalhos, e, numa jogada de mestre, transformou a placa de identificação com seu nome num marcador de mortos pela Covid.
O presidente da CPI, senador Omar Aziz (PSD-AM), ganhou projeção nacional pela condução dos trabalhos. Numa das primeiras sessões da Comissão calou um depoente ao dizer que tinha perdido um irmão para o coronavírus.
Um dos momentos mais marcantes da CPI da Pandemia não teve relação direta com a Covid. Em um das últimas sessões, quando era ouvido o empresário Octávio Fakhoury, o senador Fabiano Contarato (Rede-ES) assumiu a presidência dos trabalhos para cobrar do depoente desculpas públicas e ele e a toda a população LGBTQIA+ do Brasil pelo ataque homofóbico de Fakhoury ao senador. Valente nas redes sociais, Fakhoury murchou diante de Contarato.
O deputado Luis Miranda (DEM-DF) e seu irmão, Luis Ricardo Miranda, mudaram o rumo da CPI pela primeira vez ao relatar tentativas suspeitas de compra de vacinas por intermediários. Seus depoimentos deixaram os senadores governistas sem discurso.
A senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) também projetou-se nacionalmente pela assertividade e contundência das perguntas. Não bastasse, liderou o movimento das 12 senadoras que lutaram por uma vaga entre os membros da CPI depois que os partidos indicaram somente homens para compor a Comissão.
A senadora Simone Tebet (MDB-MS) viveu seu grande momento na CPI quando arrancou do deputado Luís Miranda (DEM-DF) o nome do deputado Ricardo Barros, como tendo sido a pessoa citada pelo presidente Jair Bolsonaro quando Miranda lhe colocou a par das suspeitas de irregularidades na compra de vacinas. Barros foi ministro da Saúde no governo Temer e hoje é líder do governo Bolsonaro na Câmara dos Deputados.
A assiduidade e as perguntas certeiras do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), que fez carreira como delegado de polícia, apontaram bons caminhos durante as arguições da CPI. Com mandato até 2027, Vieira tenta se viabilizar como uma opção de terceira via na disputa presidencial de 2022. O caminho será longo e sinuoso.
No começo da CPI havia grande expectativa quando ao depoimento do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta. Sua fala foi correta e repercutiu, mas ficou desatualizada depois da participação dos irmãos Miranda e do capítulo Prevent Senior, temas sobre os quais Mandetta pouco tinha a dizer por ter deixado o cargo no começo da pandemia.
Pela experiência e respeito dos colegas, o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) prometia bons momentos como titular da CPI, mas sua participação foi minguando ao longo do tempo.
Por seu estado ter sido palco dos momentos mais dramáticos da pandemia, com o colapso do abastecimento de oxigênio, o senador amazonense Eduardo Braga (MDB) era outra grande promessa. Muito presente no início, acabou tendo uma atuação morna na segunda metade dos trabalhos da CPI.
Houve quem perdesse e quem ganhasse. E houve quem escapasse. Nessa categoria, o melhor exemplo é Ana Cristina Valle, ex-mulher do presidente Bolssonaro. Cogitada, sua convocação acabou “esquecida” pelos senadores.
O presidente Jair Bolsonaro viu sua popularidade cair aos menores níveis durante a CPI. Num primeiro momento, tentou negar que o governo tivesse sido um dos patrocinadores do tal tratamento precoce para em seguida retomar a rotina de desrespeito às regras de isolamento e uso de máscaras e o discurso anti-vacina.
O ex-ministro Eduardo Pazuello chegou à CPI na condição de investigado pela Polícia Federal. Tentou tirar de seu colo a responsabilidade pelo tratamento precoce durante o único depoimento que se estendeu por mais de um dia. Não convenceu e deve ser um dos mais implicados no relatório final da Comissão.
Por pouco o ex-secretário das Comunicações Fabio Wajngarten não foi preso durante seu depoimento. Renan Calheiros pediu sua prisão, mas o presidente Omar Aziz pôs panos quentes.
Apadrinhado pelo deputado Ricardo Barros, o servidor Roberto Dias perdeu o emprego no Ministério da Saúde depois de ter sido acusado de pedir propina de 1 dólar por dose de vacina na negociação com empresas de fachada. Saiu da CPI preso, mas foi solto depois de algumas horas de detenção. Concorre com Pazuello ao posto de mais implicado no relatório final.
Chamado de “soberbo” pela senadora Simone Tebet (MDB-MS) e acusado de mentir à CPI pelos senadores Alessandro Vieira, Randolfe Rodrigues e Renan Calheiros, o deputado Ricardo Barros (PP-PR) chegou para depor como convidado e depois de muita tensão ficou de voltar como convocado. Mas o novo chamado acabou “esquecido” pelos senadores.
O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, chegou à CPI beneficiado pelo fato de estar há pouco tempo no cargo. Mas sua disposição de preservar o chefe lhe custou muitas reprimendas dos senadores e uma nova convocação que acabou desmarcada na semana passada.
A operadora Prevent Senior sai da CPI tão desgastada que se teme pela sua sobrevivência e a consequente desassistência de seus segurados. A empresa é investigada pela PF e pelo Ministério Público Paulista. Com reputação mais baixa, nem o kit covid.
Para ficar de olho na semana que vem
– No relatório da CPI da Pandemia, claro.
– Na votação da PEC que altera a composição do Conselho Nacional do Ministério Público, remarcada pela quarta vez para terça-feira. É evidente a tentativa dos deputados de submeter o MP.
– No debate que o jornal O Globo promove na terça-feira com os três tucanos que disputarão as prévias para definição do pré-candidato do PSDB à presidência da República, o ex-prefeito de Manaus Arthur Virgílio e os governadores Eduardo Leite (RS) e João Dória (SP). A imprensa procura avidamente pela terceira via. Em setembro, a Globonews promoveu um debate entre Ciro Gomes (PDT), Luiz Henrique Mandetta (DEM) e Alessandro Vieira (Cidadania).
Para ver no fim de semana
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