Com voz, sem voto
O início dos trabalhos da CPI da Pandemia, que apura a condução do enfretamento da crise sanitária pelo governo federal e a aplicação dos recursos federais por estados e municípios, foi marcado pela ausência de senadoras entre seus integrantes. A CPI tem 18 senadores (11 titulares e sete suplentes), todos homens. Cabe aos blocos partidários indicarem os integrantes. Surpreende que nenhuma mulher tenha sido indicada apesar de serem 15% do total de 81 senadores – entre elas, a médica Zenaide Maia (PROS-RN).
Foi preciso um acordo na comissão – costurado após muita tensão e oposição dos senadores governistas – para que uma representante da bancada feminina interrogue convidados e convocados a cada sessão da CPI. Esta semana, mais um avanço: a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) somou-se ao grupo de senadores ditos independentes e de oposição ao governo federal que lidera os trabalhos na CPI.
Apesar do direito à voz, as senadoras não poderão assinar nenhum requerimento nem votar esses pedidos, prerrogativas dos membros oficiais. Nas redes sociais, o Me Too Brasil se manifestou sobre o que chamou de “a CPI deles”: “Além do grave problema de representação, é preciso considerar que as mulheres são atingidas de maneiras específicas pela pandemia, sendo as mais afetadas pelo aumento da violência doméstica e tendo as taxas de desemprego mais altas que as dos homens”.
Sem falar na ausência formal de parlamentares mulheres no principal espaço de disputa política do País nos próximos meses.
Crédito foto: Edilson Rodrigues / Agência Senado
Legenda foto: Eliziane Gama, única senadora entre os homens que lideram os trabalhos da CPI
Enquanto isso…
Embora as senadoras ainda disputem espaço com os colegas homens um mês depois de instalada da CPI da Pandemia, as mulheres dão as caras no noticiário desde o início da crise sanitária. Nas rádios, TVs, portais de internet e redes sociais, as informações são publicadas, explicadas, contextualizadas por dezenas de mulheres. São professoras, médicas, enfermeiras, pesquisadoras e cientistas brasileiras que viviam no anonimato dos laboratórios, hospitais e das salas de aulas do Brasil e do exterior que têm dado rosto e voz à pandemia.
A pneumologista Margarete Dalcolmo é uma das mais assíduas, explicando a gravidade da doença, o risco das variantes do vírus, e reforçando as medidas de proteção. A microbiologista Natalia Pasternak, diretora-presidente do Instituto Questão de Ciência, avalia conjuntura e aponta os rumos da pandemia a partir de dados da vacinação. A presidente da Fiocruz, a socióloga Nísia Trindade, lidera a equipe que produz parte das vacinas aplicadas nos brasileiros.
Elas e tantas outras mulheres estão sempre a postos para desfazer os mitos antivacina e explicar a eficácia dos imunizantes. São a prova de que ciência é, sim, coisa de mulher.
Flores e machismo
Criado há 197 anos, no Império, o Senado brasileiro só recebeu a primeira senadora mais de 150 anos depois, em 1979. Segunda colocada nas eleições de 1978, a professora paulista Eunice Michiles (Arena-AM) fez carreira política no Amazonas e assumiu depois da morte do senador João Bosco (Arena-AM), vítima de um AVC. Foi recebida pelos 80 colegas com flores, chocolates e poesia.
Agradeceu com uma crítica contundente ao machismo velado, num discurso que hoje também seria tido como preconceituoso: “Como primeira senadora, sinto os olhares de milhões de mulheres na expectativa de que lhes saiba interpretar as reivindicações. O Código Civil nos coloca ao nível do índio, da criança e do débil mental. Somos fruto de uma cultura patriarcal e machista, onde a mulher vive à sombra do homem e rende obediência ao pai, ao marido ou, na falta deste, ao filho mais velho. Em 1979, temos muito a melhorar.”
Houve avanços em 40 anos, ainda mais se se considerar que o diploma expedido pelo Tribunal Regional do Amazonas do Amazonas após a eleições de Eunice Michiles tratava a senadora no masculino. Mas as mulheres podem e devem estar onde quiserem, inclusive na principal CPI em curso no País.
Legenda foto: A senadora Eunice Michiles com as flores recebidas no dia da posse
Crédito foto: Arquivo pessoal
Legenda foto: No diploma expedido pelo TRE-AM, Eunice Michiles é tratada no masculino
Crédito foto: Arquivo pessoal
E na sua empresa?
O que se vê no Senado não está tão distante do cotidiano das empresas brasileiras. Dados do movimento 30% Club, a campanha global por um mínimo de 30% de mulheres nos conselhos de administração e nas diretorias das companhias, revelam que em 2020 esse percentual é de 12% (três pontos percentuais a menos que a bancada feminina no Senado) nas empresas listadas na B3.
Dos 14 países e regiões do globo consideradas no levantamento, só estamos à frente do Chile, onde em 2019 o percentual era de 9,4% nas empresas listadas no índice IPSA, da Bolsa de Valores de Santiago. O Reino Unido superava a meta desde 2010. A Austrália, desde 2015.
Tanto a campanha global quando a conduzida pela seção brasileira do 30% Club buscam o engajamento de presidentes de conselhos e CEOs para estimular a demanda por mais mulheres entre seus pares. Também propõem a identificação e a influência de outros interessados (stakeholders) que possam promover essa mudança.
Discurso e prática
O Brasil tem o terceiro melhor arcabouço jurídico para enfrentar a violência contra a mulher – estamos atrás apenas de Espanha e Argentina -, de acordo com levantamento do Me Too Brasil. Mas somos o quinto no ranking mundial do feminicídio. Uma contradição que pode esconder a enorme distância entre discurso e prática.
O avanço no tratamento da questão é visível. Houve mudanças significativas no conteúdo publicitário e no tratamento editorial do tema pelos meios de comunicação. As empresas se mexem para ampliar a participação das mulheres nos cargos de direção.
Mas as estatísticas mostram um caminho longo a percorrer: 51,8% da população brasileira são mulheres, segundo o IBGE, 53% das famílias brasileiras são chefiadas por mulheres e 5,5 milhões de brasileiros não têm o nome do pai na certidão de nascimento.
Um castelo para curtir o fim de semana
Os desafios enfrentados pelas mulheres na política são a espinha dorsal de Borgen, série atualíssima apesar de ter sido lançada em 2010. Os 30 episódios disponíveis na Netflix mostram a ascensão da deputada de centro-esquerda Birgitte Nyborg ao posto de primeira-ministra da Dinamarca, a primeira mulher a assumir o cargo. O desempenho da atriz Sidse Babett Knudsen lhe valeu prêmios ao redor do mundo.
Borgen (castelo, em dinamarquês, e termo usado pelos cidadãos do país escandinavo para se referir ao seu parlamento) também mostra as relações entre os políticos e a imprensa, o cotidiano sem mordomias dos parlamentares e as articulações em busca do poder.
[/et_pb_text][/et_pb_column][/et_pb_row][/et_pb_section]